quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Água: recurso e patrimônio



“Em todos os sentidos, a água é o maior patrimônio deste planeta e como tal deve ser encarada, sobretudo sob o ponto de vista cultural. Todos os bons e os maus usos da água têm sua origem no comportamento cultural dos diferentes segmentos de nossa sociedade. ”
(DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. ANA, 2012, Seminário sobre Água e Patrimônio Cultural.)


Na União Europeia, o primeiro considerando da norma que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água diz que “ A água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado como tal. ”A diretiva europeia para as águas também põe ênfase na abordagem ecológica e na proteção das águas. Em Portugal a lei da água (Lei no.58, de 29 de dezembro de 2005) segue o espírito da legislação europeia. Ela tem como objetivos “Evitar a continuação da degradação e proteger e melhorar o estado dos ecossistemas aquáticos e também dos ecossistemas terrestres e zonas úmidas diretamente dependentes dos ecossistemas aquáticos, no que respeita às suas necessidades de água.” Baseia a utilização sustentável da água numa proteção a longo prazo dos recursos hídricos disponíveis e se propõe a obter uma proteção reforçada do ambiente aquático. Explicita o valor social e ecológico da água e a necessidade de um elevado nível de proteção. A lei portuguesa tem por âmbito de aplicação a totalidade dos recursos hídricos abrangendo, além das águas, os respectivos leitos e margens, bem como as zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas.
Patrimônio hídrico, proteção dos ecossistemas aquáticos, abordagem ecológica, âmbito de aplicação abrangente são algumas das características das leis das águas europeias.

Já no Brasil, a lei das águas (Lei nº 9.433 de 8 de janeiro de 1997) explicita duas vezes que a água é um bem com valor econômico ("a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico") mas não explicita em nenhum momento que ela tenha valor ecológico. A lei não menciona uma única vez a palavra patrimônio e menciona 174 vezes a palavra recurso. Entretanto a legislação brasileira em nenhum dispositivo define o que são os recursos hídricos.  

Recursos remetem à ideia de algo a que se recorre para atender a alguma demanda ou que se usa em caso de necessidade.     Já o patrimônio é algo valioso, uma riqueza material ou imaterial que merece proteção e guarda e que não deve ser gasto ou desperdiçado, pois isso leva ao empobrecimento de seu detentor. A água não é apenas um recurso a ser utilizado ou gasto. É patrimônio ambiental a ser cuidado e protegido. Uma abordagem que ignore seu valor ecológico,como patrimônio natural, induz a uma gestão que resulta no mau estado ecológico das águas, na destruição das áreas úmidas e em outras consequências negativas. A gestão das águas é mais integrada onde ela é explícitamente reconhecida como um patrimônio com valor ecológico e não apenas como um recurso com valor comercial, monetário ou econômico.

No Brasil uma das diretrizes da Lei nº 9433 é a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental. Quase vinte anos depois de aprovada essa lei, pouco se avançou nessa integração. Quais as dificuldades para se colocar em prática a diretriz de integrar a gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental? Há questões conceituais  cujo esclarecimento pode facilitar tal integração:
     A clara definição do que sejam recursos hídricos -se numa acepção ampla como a adotada em Portugal, se numa acepção restrita - ajudaria a dar mais nitidez conceitual para a gestão de tais recursos.
     Além disso, a compreensão da água como um patrimônio, uma riqueza que é prudente não dilapidar e da qual não se deve abusar, pode induzir a uma atitude de maior cuidado em relação a ela,  preservando seu bom estado ecológico e qualidade.




sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Ecologizando a cidade e o planeta



O que se pode fazer para contribuir para reduzir emissões de gases de efeitos estufa pelas cidades e pelo ambiente construído?

Os relatórios do IPCC – Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, das Nações Unidas, composto por mais de 2 mil cientistas – mostraram que há um enorme potencial para reduzir emissões de gases de efeito estufa a partir do ambiente construído.
Muito se pode fazer para as cidades serem ecologizadas, por meio da certificação de construções sustentáveis, de normas para a construção e para o urbanismo, por meio do planejamento de transportes e tráfego urbano; por meio do ecodesign de vários tipos. A ecologia urbana e a ecologia industrial são campos das ciências ecológicas com forte potencial para contribuir nessa tarefa.

No contexto da crise energética dos anos 70, o alto preço de energia motivou a busca de soluções arquitetônicas, construtivas e urbanas que levasse à economia de energia. Quando a crise amainou, esses esforços foram abandonados.
Quatro décadas depois os temas ambientais, energéticos e climáticos retornaram com intensidade crescente. Hoje o tema da arquitetura, da cidade e da construção sustentáveis estão na ordem do dia. Essa questão tende a condicionar o desenho do espaço, à medida que aumentar a escassez e o alto preço da energia derivada do petróleo ou de outras fontes, dada a gravidade dos impactos que sua exploração e uso causam sobre o ambiente e sobre o clima.   

Qual a relação entre cidade e energia?
Grande parte da energia usada nas sociedades modernas destina-se à construção e operação dos assentamentos humanos, habitações ou cidades, com sua infra-estrutura. Ao se construir as habitações, os equipamentos públicos e a infra-estrutura urbana, fazem-se investimentos iniciais de energia, provenientes de fontes variadas: os derivados do petróleo, a lenha, a hidroeletricidade, a energia solar, a energia animal, a força humana etc. A construção dos assentamentos humanos inclui operações diversas, tais como a extração da matéria-prima, seu processamento industrial, o transporte dos materiais de construção e sua montagem na obra.
A cidade é, do ponto de vista energético, um ponto do espaço que importa certas formas de energia, as transforma e exporta de forma desagregada.
Investimentos permanentes de energia são realizados na etapa de operação dos assentamentos humanos, durante sua vida útil: a cozinha, o aquecimento de água, a iluminação, a climatização da habitação, a secagem de roupas, a preservação de alimentos, o abastecimento de água, o transporte e a recreação, a comunicação por meio de computadores são algumas das atividades que consomem energia proveniente de várias fontes e que utilizam variados equipamentos ou instalações.

Quais os maiores gastos de energia nas cidades, em climas tropicais?

A proporção entre a energia inicial e a energia usada na manutenção é variável de país para país e de edificação para edificação. Como regra geral, no clima temperado gasta-se mais energia de manutenção, devido às exigências de calefação de casas nos invernos e também ao estilo de vida intensivo em energia de suas populações.  
Nos climas temperados precisa-se de luz e sol; nos tropicais, de sombra e ar para ventilar e dar conforto térmico. Nos climas tropicais, os estilos de vida menos intensivos em energia e as condições climáticas favorecem a conservação de energia na operação dos assentamentos humanos.   Por isso, nos climas tropicais, têm importância especial os investimentos iniciais de energia na construção das edificações e dos assentamentos humanos. Mas, com o aquecimento progressivo, cada vez mais precisa-se usar ar condicionado nos carros, nas casas, nos locais de trabalho, para proporcionar conforto térmico.

O que é ecologizar a cidade?

Nas cidades vive hoje mais da metade da população mundial e no Brasil essa proporção se acerca de 80%. O adequado planejamento ou gestão urbana, bem como o ecodesign de construções e das cidades podem contribuir muito para tornar nosso habitat mais sustentável.
Ecologizar a cidade é cuidar de sua relação com o meio ambiente, o clima e a energia. 
As cidades exercem pressão sobre a capacidade de suporte do ambiente ao se abastecerem de água, materiais e construção, alimentos e energia. Gerenciar o ciclo de vida das construções e das cidades, desde a extração de materiais de construção, seu processamento, uso e descarte de resíduos é uma forma de abordá-la do ponto de vista ecológico.
Cada pessoa pode fazer individualmente a sua parte, no seu âmbito de ação. Pode mudar seu modo de vida para reduzir seu impacto sobre o ambiente como consumidora, eleitora, trabalhadora e nos vários papéis que desempenha na sociedade. Especialmente ao adotar hábitos alimentares de baixo impacto, eliminando ou reduzindo o consumo de carne, um indivíduo pode dar uma contribuição relevante, no seu cotidiano.
Existem ações, entretanto, que precisam ser tomadas coletivamente para facilitar que os indivíduos, famílias e grupos sociais adotem estilos e formas de vida mais ecológicas, de forma mais eficiente energeticamente e com menores impactos ambientais ou emissão de gases de efeito estufa.

Nos anos 70, as crises do petróleo chamaram a atenção para a finitude desse recurso e para a necessidade de investir em energias limpas e renováveis.  Quando a crise amainou, esses esforços foram abandonados. Três décadas depois, neste início do século XXI, os temas ambientais, energéticos e climáticos retornaram com intensidade crescente.

Há exemplos de assentamentos humanos sustentáveis?
Se compararmos os sistemas de assentamentos humanos de acordo com sua escala, verificamos que na Ásia as redes de centenas de milhares de aldeias souberam se sustentar por milênios com baixa pressão sobre o ambiente, ao passo que as metrópoles modernas são vorazes em consumir materiais e energia e têm uma forte pegada ecológica.  Mas grandes cidades também podem ser planejadas e geridas de modo a reduzir seu impacto ambiental. O uso de fontes limpas e renováveis de energia e sua conservação são cruciais para reduzir os impactos ambientais e climáticos das cidades.

O que é a arquitetura ecológica?
A arquitetura ecológica resulta do uso de materiais e tecnologia adequados, do aproveitamento climático voltado para a qualidade de vida e tem características próprias. A casa autônoma pode reduzir suas demandas de energia, alimentos e água, a partir do design ecologicamente responsável.
A arquitetura ecológica é consciente de seus impactos ambientais e climáticos, mesmo aqueles que ocorrem distantes do local em que a obra está sendo construída. Ela economiza energias e materiais, consciente de que o uso ou a exploração de qualquer fonte de energia produz impactos ambientais, e que a energia que se economiza ou que se deixa de utilizar é a que menos polui o ambiente; atende a necessidades básicas, individuais e coletivas, e não apenas a demandas supérfluas formuladas e reforçadas por parcela minoritária da população; é consciente do clima e das modificações que este sofre em escalas global e local, procurando proporcionar conforto ambiental – térmico, acústico, luminoso – com o menor dispêndio de energia.
Além disso, ela é consciente de seus impactos socioeconômicos e usa tecnologia, material e capacitação humana existentes na região em que vai se construir. Isso significa contribuir para desacelerar a devastação do patrimônio ambiental e para mudar a direção desenvolvimento; ela busca ser mais autônoma e menos dependente em termos de seu abastecimento de energia, água e alimentos.

O que é preciso fazer para ecologizar as profissões que cuidam do ambiente construído?

O paisagista, arquiteto e engenheiro podem atuar no sentido de evitar desperdícios, influir sobre os clientes perdulários e ecologicamente irresponsáveis, modificar a ação dos demais membros da cadeia produtiva da construção civil.
Ecologizar a arquitetura e o urbanismo exigem desenvolver, holisticamente, a percepção sensorial e a consciência ecológica.
Os chamados edifícios verdes ou sustentáveis e a arquitetura bioclimática usam de forma inteligente a ventilação, iluminação e insolação naturais. Eles precisam ser concebidos a partir da formação profissional nas escolas, com um ensino não apenas teórico e conceitual, mas que recolham da prática construída bons exemplos que possam ser adaptados e replicados; concursos de arquitetura e obras primas precisam valorizar a arquitetura ecológica; o ecodesign possibilita fazer mais com menos materiais e menos energia.
Materiais de construção precisam ser selecionados conforme seus mínimos impactos ambientais e climáticos. A redução de desperdícios de materiais é um dos critérios para se avaliar uma arquitetura ecologicamente adequada. A integração do paisagismo e da vegetação às soluções arquitetônicas e urbanísticas precisa ser valorizada.
Nesse contexto de crise climática e de crescente custo ambiental da energia, é urgente que os arquitetos, engenheiros, advogados e demais profissões coloquem a criatividade a serviço de ecologizar o ambiente construído.






terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A EDUCAÇÃO E A CRÍTICA AO HUMANISMO



A perspectiva humanista, uma característica da modernidade, coloca no centro a espécie humana, seus direitos, suas demandas e desejos. A visão humanista reflete uma perspectiva do ser humano como o ápice da evolução e os considera centrais para o drama cósmico. Algumas tradições religiosas colocaram o ser humano como o coroamento da criação, com mandato para dominá-la. O enfoque antropocêntrico coloca a natureza e o planeta como pano de fundo para atender às demandas humanas e como fonte de recursos para serem usados pelos seres humanos.

A perspectiva humanista tem sido crescentemente questionada, diante da constatação de que nossa espécie se tornou grande fator de pressão sobre a natureza e da devastação que produz ao dizimar habitats, mudar o clima e provocar a extinção de espécies. 

O historiador da cultura Thomas Berry apontou as deficiências das tradições humanistas alienantes: “Tanto nossas tradições religiosas como humanistas são primordialmente comprometidas com uma exaltação antropocêntrica do humano. ” [1] Ele considera que, na história da Terra, o momento atual é equivalente, em termos de profundidade de transformações, às que ocorreram há 67 milhões de anos, quando o planeta passou por uma grande extinção e por mudanças climáticas que dizimaram os dinossauros. Uma diferença é que, na situação atual, a espécie humana é quem agrava as catástrofes e a tragédia ambiental.
James Lovelock, autor da teoria de Gaia, é outro crítico da visão humanista e social, que levou a sobre explorar o planeta e a precipitar a atual crise ecológica e climática. Considera que “A humanidade, totalmente despreparada por suas tradições humanistas, enfrenta seu maior teste”. [2] Lovelock propõe que se desloque o foco para o bem-estar e a saúde do planeta, Gaia, tendo em vista que sua existência saudável é precondição para a vida humana e de todas as outras espécies. Outros propõem uma visão ecocêntrica, biocêntrica.
A ecologia profunda rejeita o humanismo. Atribui os problemas ambientais ao antropocentrismo, que procura preservar recursos para o uso do homem e não pelo valor intrínseco da natureza. Nesse sentido coloca-se o MAUSS - o movimento antiutilitarista nas ciências sociais – que questiona a abordagem de colocar a natureza a serviço do ser humano, subestimando o valor dos serviços ambientais, tais como a regulação do clima, a produção de água e outros processos fundamentais para sustentar a vida.

As respostas para a crise ecológica atual devem estar à altura das dimensões épicas das transformações. Isso inclui uma mudança de perspectiva semelhante àquela adotada por Copérnico, que demonstrou que o sol, e não a terra era o centro do sistema. Galileu sofreu por demonstrar essa realidade. (Posteriormente constatou-se que somos ainda mais periféricos do que eles imaginavam, pois o sol é apenas uma es
trela de 5ª grandeza situada na periferia de uma das milhões de galáxias no universo).
Migrar de um ângulo de visão antropocêntrico e humanista para uma perspectiva Gaiacêntrica demanda semelhante humildade e desprendimento. O homo sapiens não é o fim da evolução, mas é um ser em transição, como propõe Sri Aurobindo. Esse ser poderá ser sucedido na evolução por um ser trans-humano, póshumano ou, numa perspectiva ecológica, ecohumano.
Para superar a crise ecológica e da evolução, cabe uma perspectiva pós-antropocêntrica. Nessa era, o ser humano deixa de ser uma presença disruptiva e devastadora, vindo a ser uma presença benigna diante do mundo natural, como propõe Thomas Berry. Esse ser humano ecologizado pode tornar-se gestor da evolução de forma menos destrutiva do que a que vivenciamos.
Nesse contexto, cabe desaprender conceitos e visões de mundo. Cabe à educação transcender a perspectiva humanista e adotar princípios e conteúdos que facilitem a transição para a era noológica da evolução do planeta.



[1] Berry, Thomas, The Great Work, pg 104.
[2] Lovelock, James, A vingança de Gaia.