sexta-feira, 29 de abril de 2016

Três Pierres e a noosfera



 Três Pierres, de origem na tradição francesa, com visão cósmica e pós-materialista, contribuíram para que eu compreendesse de modo holístico e abrangente as questões da consciência: Pierre Teilhard de Chardin, Pierre Dansereau e Pierre Weil. As contribuições desses três Pierres ajudam a compreender as transformações da matéria inanimada para a vida, para a energia e para o conhecimento. Ajudam a compreender o papel que exerce a espécie humana, com sua capacidade crescente de interferir sobre o curso da evolução.
O padre, teólogo, filósofo e paleontólogo Pierre Teilhard de Chardin divulgou em seu livro O fenômeno humano, o conceito de noosfera. Escreve ele: “É verdadeiramente uma camada nova, a “camada pensante”, exatamente tão extensiva, mas muito mais coerente ainda, como veremos, do que todas as camadas precedentes, que, após ter germinado no Terciário declinante, se expande desde então por cima do mundo das Plantas e dos Animais: fora e acima da Biosfera, uma Noosfera. ” (TEILHARD DE CHARDIN, 1966, pg.189). Ela engloba a cultura, ideias, espírito, linguagens, teorias, pensamentos, emoções, sentimentos, informações, geradas ou captadas desde o início da vida. Esse conceito surgiu num seminário dado pelo cientista russo, geólogo com interesse múltiplos Vladimir Vernadsky em Paris, que tinha como dois alunos Eduard LeRoi e Teilhard de Chardin. Trata-se de uma esfera de informação e consciência que circunda o planeta, (além da atmosfera, da hidrosfera, da pirosfera etc, esferas que se referem à matéria e da biosfera, que remete à vida). A Noosfera (do grego noos, consciência) é a esfera da consciência intuitiva. Trata-se do conjunto de energias mentais, pensamentos, informações, geradas ou captadas desde o início da vida, e que constituem uma sutil camada que circunda o planeta. As ações humanas têm poder crescente de influir sobre a matéria e a vida, especialmente nesse período antropoceno da história, no qual a ação humana impacta fortemente na dinâmica de transformações que acontecem no planeta. A noosfera é o campo da consciência, que influi todos os demais campos – a pirosfera, a litosfera, a hidrosfera, a atmosfera, a biosfera. O autoconhecimento, a reflexão sobre a consciência humana, tornaram-se fundamentais para orientar a energia dessa consciência e a força das palavras e da comunicação humana em direção a ações amigáveis para o meio ambiente.
As ciências naturais e biológicas estudam a matéria e a vida conforme as esferas em que se situam: a pirosfera, barisfera, a litosfera, a hidrosfera, atmosfera, a biosfera etc.


 Pierre Dansereau, botânico e geógrafo, incorporou a dimensão da consciência em sua obra e em seus diagramas.  Trata-se da noosfera que, para ele, penetra gradualmente muito além dos limites da biosfera e tem a força e o poder de influir sobre ela. Isso é visivelmente percebido no período antropoceno da história, no qual ideias, pensamentos, sentimentos, emoções humanas influenciam em suas ações, que por sua vez produzem impactos sobre a biosfera, a hidrosfera e todas as demais esferas da natureza.

Pierre Dansereau fala das inscapes, paisagens interiores, e com isso ele facilita que incorporemos, além da matéria e da vida, também a consciência do campo dos estudos da ecologia, com visão holística e integradora. 
A paisagem interior é povoada por componentes subjetivos e vem sendo crescentemente estudada por aqueles que se dedicam à consciência humana. Um desses componentes são as necessidades humanas, fisiológicas, de segurança, de participação ou aceitação social, de respeito, de auto realização, conforme visualizada na pirâmide de Maslow. Tal lista de necessidades variadas tem correspondência com os chacras, ou centros de energia, no corpo humano, estudados por Pierre Weil.
                

Realçando a importância da percepção de cada indivíduo, Pierre Weil usava uma fórmula para expressar que a vivência da realidade é função do estado de consciência. VR=f (EC). Essa compreensão da diversidade de percepção e consciência humana abre para a necessidade da comunicação e educação estarem baseadas no conhecimento dessas diferenças subjetivas de percepção e consciência. Também facilita o trabalho daqueles que precisam mediar conflitos de interesses em torno das questões ambientais.
Dansereau mostra, num de seus desenhos expressivos, que uma mesma paisagem é percebida de forma distinta por pessoas de distintas formações e atividades: um caçador ressalta a fauna, o minerador a sua geologia, o engenheiro, que nela enxerga a possibilidade de aproveitamento de seus recursos naturais, e o poeta, a beleza que ali merece ser contemplada. Cada indivíduo humano percebe o ambiente de modo pessoal e intransferível, filtrado por seus condicionamentos linguísticos e culturais, de educação e formação profissional, de sua história pessoal, de seus interesses, motivações, desejos, vontades, caprichos, sonhos, fantasias, imagens mentais, estímulos, impulsos, necessidade e demandas, crenças, emoções, sentimentos, medos, pensamentos, instintos, valores, preconceitos.

Diferentes formações influenciam a percepção de uma mesma paisagem

Pierre Dansereau mostra que a ecologia integral pode ser praticada em várias escalas, na mandala em que ele nos transporta para uma viagem, do pequeno ao grande, do ser humano interior até a família, a cidade, a região e o planeta. Ele coloca no centro desse círculo o indivíduo, a pessoa interior, com seus valores éticos e humanos. Em cada um desses âmbitos de atuação, ocorrem problemas ambientais específicos. Há questões que devem ser tratadas na escala individual, outras na escala regional, outras globalmente.



As diversas escalas de percepção do ambiente e de ações ecológicas

Pierre Dansereau foi pioneiro ao integrar as ciências cognitivas e todo o ambiente interior das pessoas ao seu modelo integral do ambiente.
A cosmovisão de Pierre Dansereau o aproxima de filosofias orientais e tradições includentes, como a do hinduísmo, de tradições que valorizam a compaixão, como a do budismo e de tradições que não desacoplam a espécie humana da natureza, mas que a compreendem como parte integrante de um todo, enriquecida por sua consciência e capacidade de refletir sobre si mesma.
Numa de suas viagens ao Brasil, em 1991, Pierre Dansereau, palestrou na Cidade da Paz e em Belo Horizonte, onde eu era secretário de Meio Ambiente. Era o contexto da Rio-92 e havia grande efervescência sobre o tema. Quando fui ao Canadá, num encontro do – International Council of Local Environmental Initiatives-ICLEI em Toronto, Pierre Dansereau me convidou a estender a visita a Montreal. Estabelecemos desde então uma grande afinidade eletiva e intelectual. Quando o presenteei com o livro Ecologizar, ele escreveu um prefácio, que foi incorporado nas edições posteriores do livro.
Esses Pierres com sua visão holística, transdisciplinar e integral me ensinaram muito, especialmente nas questões ligadas às paisagens interiores, à ecologia interior e à noosfera.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Unidade na diversidade



O mundo é diverso, mas é uno. O astronauta ao longe percebe essa unidade, para além de todas as diversidades internas. Pierre Weil enfatizou essa unidade ao apontar para a fantasia da separatividade, pela qual temos a impressão de sermos partes separadas desse todo.


A visão do astronauta e a visão supranacional: a percepção da Unidade
Ter um projeto comum pode ser essencial para trabalhar numa direção convergente. Hoje, com a crise climática, há esforços para se evitar que o planeta se aqueça mais do que 2 graus centigrados, o que poderia levar a situações catastróficas e caóticas.  Grandes obras comuns são necessárias, envolvendo toda a espécie humana, no seu próprio auto interesse de sobrevivência.  Um projeto unificador pode ser a construção de uma unidade política planetária. Edgar Morin, em texto intitulado “O grande projeto”, observa que “A fecundidade histórica do Estado-Nação hoje se esgotou. Os Estados-Nação são por si mesmos monstros paranoides incontroláveis, ainda mais sob ameaças mútuas. Uma primeira superação dos Estados-Nação não pode ser obtida, senão por uma confederação que respeite as autonomias, suprimindo a onipotência. ” “Mas nós ainda estamos na "idade do ferro planetário": ainda que solidários, continuamos inimigos uns dos outros e a explosão dos ódios de raça, de religião, de ideologia, provoca sempre guerras, massacres, torturas, ódio e desprezo. ” (MORIN, 1988). A ação em cada uma de suas partes – nações, estados, sociedades, cidades, empresas, indivíduos – se insere em um objetivo comum maior: a saúde do Planeta, da qual depende a saúde dos sistemas vivos e a própria vida humana. Sri Aurobindo enfatizou a importância de se alcançar a unidade. No seu pensamento político e social, Sri Aurobindo postulou que os Estados-Nação não constituem a última etapa do desenvolvimento político humano e que a unidade econômica e administrativa do planeta seria necessária. Em O ideal da unidade humana, estudou os impérios e as nações, com sua formação e estágios de desenvolvimento; antecipou a unificação da Europa; abordou as possibilidades de um Império Mundial e as enormes dificuldades no caminho em direção à unidade internacional; tratou também dos princípios para uma confederação livre de nações e as condições necessárias para que ocorresse tal união mundial livre. A unidade humana que está no centro do pensamento de Sri Aurobindo, estende-se aos domínios militar, econômico e administrativo. Ela respeita e valoriza a diversidade. A visão mundialista insere as propostas para a política numa visão cosmopolita da unidade humana, que vai para além do patriotismo, dos interesses de clãs e tribos, étnicos ou nacionais.  Ela expressa a necessidade de unidade política humana e de uma cosmovisão adequada para compreender os tempos em que vivemos. (AUROBINDO, 1970).
Promover a Consiliência, proposta por E.O Wilson, é uma forma de resgatar a unidade.  Duane Elgin propõe que se construam grandes narrativas inspiradoras capazes de comunicar com clareza o sentido e o rumo da evolução, de forma a produzir convergências de pensamentos e de ações. ((ELGIN, 1993). Cosmovisões compartilhadas por milhões ou bilhões magnetizam e atraem a adesão e a motivação de muitos cérebros individuais num mesmo rumo e direção. Imaginar um projeto unificador, ter a determinação e mobilizar os recursos para colocá-lo em prática numa obra coletiva é um pré-requisito para lidar com a crise ecológica e climática planetária. Diante da perspectiva de colapso planetário e da percepção dos limites da capacidade de suporte do planeta, a busca da segurança motiva uma construção coletiva de respostas.
Hoje o contexto mundial é bastante diferente daquele que existia no momento da criação da Unipaz, três décadas atrás. As mudanças se aceleraram, o mundo se conectou em redes sociais, ilusões românticas se desfizeram, amadurecemos, os jovens têm perspectivas de vida muito diferentes das que tínhamos naquela época. A crise climática expandiu o limite temporal de anos ou décadas para séculos, inserindo a história humana na história natural.
Estamos hoje no período antropoceno da história, um período caracterizado pela predominância da ação humana e seus impactos, que afetam a evolução no planeta, ao causarem mudanças climáticas, perda de biodiversidade e vários outros impactos.
Na Rio + 20 se constatou que   continuaram a se intensificar aspectos negativos tais como a desertificação, destruição do ozônio, desequilíbrios climáticos, desmatamento, poluição hídrica e dos oceanos. Entre os aspectos positivos ressalta-se a expansão da consciência ecológica. Houve uma mudança de consciência e de percepção. Exemplo: a fumaça já foi símbolo de progresso industrial, mas hoje denuncia o aquecimento global e os desequilíbrios climáticos.

Estamos no estágio terminal da era cenozoica, a era dos mamíferos, que sucedeu a era mesozoica, a dos dinossauros.
A espécie humana surgiu bem recentemente na era cenozoica.
Estamos num período de transição chamado de antropoceno devido à importância das ações humanas e de seus impactos. Diz o historiador das culturas Thomas Berry em seu livro sobre A grande obra:
"Todos nós temos nosso trabalho particular. Temos uma variedade de ocupações. Mas além do trabalho que desempenhamos e da vida que levamos, temos uma Grande Obra na qual todos estamos envolvidos e ninguém está isento: é a obra de deixar uma era cenozoica terminal e ingressar na nova 

Era Ecozoica na história do Planeta Terra". [1]
Eras na evolução
A depender da consciência e suas consequências sobre as ações, o futuro pode ser promissor e brilhante; dependendo do rumo que sua consciência lhe aponte para suas ações, pode haver um colapso da civilização humana, assim como já aconteceu na história com várias sociedades que não souberam se relacionar de modo harmônico com o ambiente. O planeta seguirá sua história, com ou sem nós. Recordo aqui uma fábula: Dois planetas se encontram e começam a conversar. Uma pergunta ao outro como vai e ele responde que está sofrendo com uma coceira que o incomoda. Foi ao médico e esse diagnosticou que ela se chamava Homo Sapiens. O outro então conclui a conversa: Não se preocupe, isso passa logo!



[1] Além da era ecozoica, há outras designações para a próxima era na história: era psicozoica, eremozoica, tecnozoica, ecológica etc. Trato desses cenários no livro Meio Ambiente& Evolução Humana.

Paz e ecologia integral




Em agosto de 1988 ao participarmos da XII Conferência da IPRA, no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, Pierre Weil e eu escrevemos um artigo que foi publicado em 1990 na revista Thot intitulado “ A paz no espírito dos homens: o princípio básico da UNESCO está sendo esquecido. ” A UNESCO dá a dica para a valorização da ecologia interior, da paz consigo mesmo e do autoconhecimento. O preâmbulo da UNESCO adaptado para o campo da ecologia fica assim: “ Se a destruição da natureza nasce nos espíritos das pessoas humanas, é nos espíritos das pessoas humanas que devem ser erguidos os baluartes da preservação ambiental e da ética ecológica”. 
Examinamos como a dimensão da paz interior estava sendo esquecida nos programas de pesquisa e formação. Ali foram pioneiramente apresentadas as rodas da transmissão da arte de viver em paz, do processo global de destruição e do despertar da paz no espírito dos homens, posteriormente desenvolvidas por Pierre no seu livro sobre A Arte de viver em paz.
                                   
Revista Thot -página inicial do artigo “A Paz no Espírito dos Homens: o princípio básico da UNESCO está sendo esquecido.”


Figura: A transmissão da arte de viver em paz. Fonte: Weil e Ribeiro, Thoth,  1990.

O diagrama da arte de viver em paz distingue três grandes campos da ecologia: a da natureza, a ecologia social e a ecologia interior. A ecologia teve origem no campo das ciências biológicas e durante o século XX se expandiu para o campo das ciências sociais e para o campo das ciências da subjetividade. A ecologia integral inclui esses três grandes campos, sintetizados na roda da transmissão da arte de viver em paz e as três dimensões da ecologia e da consciência.
Observados em maior detalhe esses três grandes campos incluem inúmeros outros, cada qual com o corpo de conhecimentos a ele associado. O campo da ecologia da natureza se desdobra nas áreas da ecologia vegetal, animal, de comunidades, da paisagem, cósmica, magnética, planetária, energética. O campo da ecologia social se ramifica nas ecologias humana, cultural, política, urbana, industrial, econômica, jurídica, do trabalho. Por sua vez, o campo da ecologia interior se desdobra nas áreas da ecologia do ser, evolutiva humana, da consciência, dos saberes, informacional, da criatividade, mental, corporal, das emoções, sensorial, médica, profunda, transpessoal, espiritual e enfatiza o autoconhecimento (“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses”, dizia o oraculo de Delfos). [1]
Pierre Weil desvendou mecanismos subjetivos e psicológicos e elaborou um método para se alcançar a paz com a natureza, social e consigo mesmo. Esse método é baseado no conhecimento das emoções, do corpo e da mente e no suposto de que a paz interior é fundamental para se alcançar a paz social e com a natureza. A partir da compreensão da unidade com o todo e da consciência ecológica, ele acreditava ser possível reverter os desequilíbrios e a destruição da paz.
Pierre Weil, com sua formação em psicologia e no retiro com os ensinamentos tibetanos, fortalecia a visão dos aspectos subjetivos e pessoais, psicológicos e da consciência. Ele contribuiu com a ecologia integral ao aprofundar-se na ecologia interior e na paz consigo mesmo, na forma de conceitos e de disseminação prática. Na teoria fundamental da UNIPAZ, ele expôs de forma didática os conhecimentos sobre a ecologia integral que aqui sintetizamos em meia página. Ali ele afirmava que “Todas as galáxias do universo são sistemas energéticos e que essa energia assume três formas inseparáveis: informática (mente), biologia (vida) e física (matéria); que o homem é parte integrante deste sistema energético, sendo feito de matéria (corpo), vida (emoções) e informática (mente) inseparáveis do todo. Em seguida ele se aprofunda nos aspectos subjetivos e da ecologia interior.  Constata que, na sua mente, o homem se separa do universo e cria a fantasia da separatividade (Homem-universo; Eu-mundo; Sujeito-objeto); que sua mente o separa da sociedade e da natureza e se esquece de que a natureza, sociedade e homem são inseparáveis. Mais ainda, a mente se considera separada da informática (consciência) do todo; a mente individual se considera separada da mente do universo (mentes que os hindus chamam de Atman e Brahman). O homem cria em sua mente a fantasia da separatividade, a fragmentação, o reducionismo; em sua vida, desenvolve emoções de apego, raiva, ciúme, orgulho, medo, depressão e em seu corpo sente fome, carências alimentares, tensões, respiração inadequada, doenças. Então, começa o processo da destruição da ecologia do ser quando se gera um paradigma de fragmentação; e porque se considera separado, gera emoções destrutivas no plano da vida, mais particularmente o apego e a possessividade de coisas, pessoas e ideias que lhe dão prazer; e por causa das emoções destrutivas surge o stress que destrói o equilíbrio do corpo. ” Ele explicava como o apego a algo gera o medo da perda e o medo da perda produz estresses e doenças de origem psicossomática.
Pierre e eu tivemos uma troca intelectual valiosa no campo das ecologias e da paz, e especialmente no terceiro grande campo que compõe a ecologia integral, o da ecologia interior, com seus aspectos subjetivos, psicológicos. Eu me interessava por esse campo desde que estudei na Índia. A cosmovisão indiana e sua concepção do ser humano como um ser em transição e da criança como uma alma em formação se abrem para a ecologia interior e da cultura de paz consigo mesmo.


[1] Para uma descrição mais detalhada de cerca de 30 campos das ciências ecológicas, ver o livro Ecologizar – volume 1, princípios para a ação, Editora Universa, 2009.