terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Dissolvendo a hidroalienação

Uma mãe instrui a criança: “Meu filho, não jogue o lixo no quintal, porque aí não é o rio”. Em pleno século XXI, os rios ainda são usados para afastar o lixo e o esgoto e as cidades voltam as costas para eles. Enquanto existirem mães que educam seus filhos com esses valores – e certamente existem milhares delas – estará sendo reproduzida uma atitude de agressão para com a água. Nas pequenas ou grandes cidades, o rio ainda é o lugar onde se despeja o esgoto sem tratamento. É lá que se joga o lixo que a água leva embora e que polui as captações de água de cidades que se estendem ao longo de rio; ou que, nas enchentes, entope os bueiros e bocas de lobo e provoca prejuízos econômicos.
Os cidadãos urbanos vivenciam fragmentos limitados do ciclo da água. Desconhecem o caminho que ela percorre até chegar à torneira e ignoram para onde ela vai quando desaparece no ralo. Pistas de rolamento para o tráfego de veículos cobrem rios, córregos, ribeirões urbanos. Avenidas sanitárias escondem os rios das cidades. Nas enchentes, eventos críticos cada vez mais freqüentes, os cidadãos urbanos têm um contato dramático com as águas, que causam prejuízos econômicos e mortes nos fundos de vales, quando os rios extravasam os caixotes em que foram confinados. As áreas de proteção de mananciais são ocupadas por habitações ou por indústrias, que poluem a águas e as consomem. A água torna-se assunto em momentos de crise, quando falta, obrigando ao racionamento ou ao rodízio ou quando se torna motivo de disputa entre cidades que dela necessitam se abastecer.
Os cidadãos urbanos desconhecem o ciclo da água que se condensa nas nuvens, precipita, escorre superficialmente ou infiltra no solo. Diferentemente de povos indígenas, agricultores ou pescadores, que têm uma noção mais integral desse ciclo, por dependerem dele para sua sobrevivência, o cidadão urbano tornou-se hidroalienado. A hidroalienação é a falta de consciência sobre como funciona o ciclo da água e a falta de conhecimento sobre como ele é alterado pela ação humana.
Os cidadãos urbanos não têm consciência das relações entre o ciclo do carbono e o ciclo da água e o fato de que, ao interferir no ciclo do carbono e aumentar a emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera, o ser humano provoca uma resposta no ciclo da água, sensível a variações de temperatura. As mudanças climáticas em curso contribuem para colocar em pauta o tema da água e da necessidade de sua gestão correta.
Tampouco tem consciência da presença da água no cosmos, de onde se origina. E muito menos ainda de seus aspectos sutis, como condutora de informação – qualidade usada na terapêutica e na homeopatia, por exemplo. De sua influência nos pensamentos e nos sentimentos (Emoto), e de linhas de pesquisa e de experimentação de ponta (ver filme Water e outros). Desconhecem também que a água circula dentro dos corpos dos animais e seres humanos, bem como dos vegetais que a devolvem à atmosfera na evapotranspiração.
A relação com a água precisa tornar-se amigável.
Para desenvolver uma relação harmônica do cidadão com a água, um primeiro passo é hidroalfabetizá-lo, dar-lhe o bê-á-bá da água. Hidroalfabetizar é promover a aprendizagem sobre a água, sua importância para a vida e como relacionar-se com ela de forma amigável; é proporcionar as noções básicas sobre o ciclo da água e sobre como a atividade humana o altera, no âmbito local ou global. (Alfabetizar é dar instrução básica e ensinar a ler e escrever. É condicionar a consciência a descobrir significados em letras, sílabas, palavras, frases, o que permite explorar o mundo da cultura e das idéias). Fritjof Capra criou na Califórnia um Centro para a Alfabetização Ecológica, ou seja, para entender como os ecossistemas sustentam a rede da vida, entender os princípios da ecologia, integrar conceitos por meio do pensamento ecológico, aprender no mundo real, criar comunidades de aprendizado, integrar a cultura da escola e o currículo. A partir daí podem-se conceber e implantar comunidades humanas sustentáveis.
Progressivamente pode-se promover a consciência hídrica, as noções sobre o ciclo da água, a presença da água no ambiente, nos corpos vivos, as manifestações culturais que a envolvem, a história do seu uso.
O grande desafio para implementar a política de águas é comportamental e cultural: transformar uma relação agressiva em uma postura amigável para com a água. Dessa questão derivam os demais desafios gerenciais, administrativos e políticos.
A hidroalfabetização para a gestão da água inclui conhecer processos participativos e instrumentos de ação, bem como o que é feito para conservá-la e dar-lhe uso sustentável. Na educação a partir do bolso, pode-se incentivar, inclusive com estímulos econômicos, que ele se interesse pela produção da água. Por meio da cobrança pelo uso da água pode-se induzir a redução dos desperdícios. É relevante conhecer os instrumentos de ação disponíveis na política ambiental e na política das águas – o licenciamento ambiental, os planos de recursos hídricos, o enquadramento de corpos d’água, a outorga, os sistemas de informação e saber como utilizá-los com perícia, de forma articulada e integrada.
Um grande desafio é, portanto, promover a hidroconsciência dos cidadãos e da sociedade. Existem várias formas de fazê-lo, por meio da hidroalfabetização, de sinais econômicos emitidos pelo sistema de preços e da implementação da gestão participativa e descentralizada das águas.
Em situações de carência e escassez torna-se imperiosa a conservação da água. Boas práticas muitas vezes derivam de benéficos conceitos e ideias, da aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos, bem como da sabedoria culturalmente acumulada.
Empresas, organizações sociais, indivíduos, governos locais têm-se empenhado em realizar boas práticas. A comunicação é fundamental para a mudança cultural e para reduzir a hidroalienação. Nesse sentido, bons serviços são prestados por programas de televisão produzidos por jornalistas ecologicamente conscientes, que divulgam soluções urbanas e rurais e contribuem para disseminá-las. Na internet muitos sites divulgam boas práticas de gestão da água. Em alguns condomínios em Brasília sujeitos à escassez hídrica, os condôminos financiam pesquisas tecnológicas voltadas para o reuso e a conservação da água, o reaproveitamento de água de chuva, a recarga de aquíferos, conservação do solo e da cobertura vegetal. Estímulos e reconhecimento a essas boas práticas têm sido dados pelos prêmios oferecidos àqueles que as desenvolvem.
A hidroalfabetização é um passo para tornar o cidadão hidroconsciente e para que suas atitudes para com a água sejam de respeito e de cuidado. Também as empresas, organizações e os vários setores do governo precisam ser hidratados e tornar-se hidroconscientes. A hidroconsciência é a compreensão de como a água está presente no universo e no planeta, como funciona o ciclo da água, a importância das bacias hidrográficas, os impactos negativos ou positivos que as atividades humanas provocam sobre ela. É um requisito para desenvolver atitudes amigáveis no relacionamento com a água. As cidades precisam voltar-se de frente para os rios e para a água.
A água é o elemento central na estruturação de um território regional. É um elemento vital que deve ser considerado por urbanistas com compromissos sociais e por ruralistas com motivações econômicas. Diferentemente de segmentos da população, tais como movimentos sociais ou empreendedores econômicos, a água não conta com advogados ou lobistas que lhe deem voz e pro isso muitas vezes é esquecida. Somente é lembrada quando se torna um problema, por escassez ou excesso. O planejamento e a gestão hidroconscientes serão cada vez mais relevantes para responder às questões sociais e econômicas. A proteção das águas e sua conservação passam a ser partes integrantes de uma evolução ecologicamente amigável.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A água na história do Brasil


Maurício Andrés Ribeiro

Muitos estados e municípios brasileiros expressam em seus nomes a importância da água: Rio Grande do Norte e do Sul, Rio de Janeiro, Piauí; Entre Rios de Minas, Lagoa Dourada, Arroio Grande, São Gabriel da Cachoeira.
A abundância da água nessa terra foi reconhecida por Pero Vaz de Caminha em 1500 em sua carta ao rei de Portugal: “Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”
Os povos indígenas que viviam no território que viria a ser o Brasil reconheciam a importância da água. Muitos lugares tinham nomes relacionados com ela: Uberaba, água que brilha; Itororó, bica d’água; Pitangui, rio das crianças; Itamaraty, água entre pedras soltas; Igarapé, caminho das canoas; Igapó, a floresta inundada nas cheias. 
As tradições culturais indígenas, de origem africana e de matriz europeia sempre deram importância simbólica e espiritual às águas.
Os rios foram, desde o início da colonização portuguesa, caminhos de entrada para o interior do país, na região amazônica. O rio São Francisco – o rio da integração nacional -  foi via de transporte de Pirapora até Juazeiro e até o século XIX um de seus afluentes, o rio das Velhas foi navegável até Sabará, cidade que integra a região metropolitana de Belo Horizonte.
 
Desde o ciclo do ouro, a água foi usada na mineração. Ela afogou escravos na mina da Cata Branca que desmoronou em Itabirito e continua sendo importante insumo na mineração atual.
No ciclo da cana de açúcar, rodas d’água foram equipamento essencial nos engenhos.
Em 1822, a independência do Brasil foi proclamada às margens do córrego do Ipiranga em São Paulo. No Império, Dom Pedro II foi motivado a recompor a floresta da Tijuca, para recuperar as fontes de água que abasteciam o Rio de janeiro.
 



Obras de infraestrutura hídrica tais como aquedutos, chafarizes e canais estão presentes nas cidades coloniais brasileiras.  Monjolos, moinhos de água, moringas, filtros de barro e outros objetos e máquinas lembram os modos como se aproveitava e armazenava água desde a época do Brasil colônia.

A falta d’água e a seca eram fenômenos frequentes no nordeste. A grande seca de 1877-1880 levou à construção de açudes, como o do Cedro, no Ceará. Os poderes curativos e medicinais das águas foram explorados na crenoterapia praticada em estâncias hidrominerais.
No século XX a hidroeletricidade foi um uso dominante das águas, o que levou a que elas fossem administradas pelo setor elétrico, desde o Código de Águas de 1934 até a lei das águas de 1997.  A partir da segunda metade do século XX a industrialização a usou intensamente como insumo na produção e para a diluição de rejeitos.
A agricultura irrigada se tornou grande usuária da água a partir da década dos anos 70, quando o Brasil tornou-se grande exportador de commodities para um mundo com muitas regiões em situação de estresse hídrico.
O Brasil que se urbanizou intensamente a partir da segunda guerra mundial demandou cada vez mais água para o abastecimento urbano. Os rios continuaram a ser usados para o despejo de esgotos in natura.  
A poluição das águas prejudica especialmente aqueles usos que dependem de boa qualidade como os esportes aquáticos ( vide os problemas durante as olimpíadas na lagoa Rodrigo de Freitas e na baia de Guanabara), o lazer, devido à precária balneabilidade em praias, cachoeiras etc; o turismo, que depende de boa qualidade  das águas, o patrimônio cultural e natural ( Sete quedas ou Guaíra, foram  inundadas pelo reservatório de Itaipu) e a pesca, que depende dos serviços ambientais e que é ameaçada pelas poluições e a má qualidade da agua.
No século XXI, a crise hídrica atingiu o centro oeste e o sudeste brasileiro. O mito da abundância das águas cede lugar a uma realidade em se multiplicam que conflitos entre usos, entre estados e entre municípios.
No século XXI as mudanças climáticas trazem a necessidade de estudar o tema da água num contexto de longo prazo, dentro dos grandes ciclos da história natural e das eras glaciais e interglaciais. Do colapso da ci    vilização maia, da cultura da ilha de Páscoa, de Fatehpur Sikri na India devido a escassez de agua o Brasil pode aprender lições que levem a uma sociedade hidricamente mais duradoura.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A água e a cultura brasileira




É forte a presença da água na cultura brasileira. Ela está presente nas palavras que designam lugares, na música, na poesia, na literatura, no paisagismo, no urbanismo e em cada modo de manifestações artísticas e culturais.
Os povos indígenas, na exuberância tropical, com seus rios caudalosos, inventaram palavras para falarem da água:  Itororó é bica d’água; Pitangui, rio das crianças; Itamaraty, água entre pedras soltas; Igarapé é caminho das canoas; Igapó é a floresta inundada nas cheias; Uberaba, água que brilha. Na cultura popular há crenças de que na água vivem seres sobrenaturais, como o caboclo d’água, o boto tucuxi e as sereias; a iara ou mãe d’água, que recebe oferendas e, em troca, dá pesca abundante.
Ela batiza muitos municípios brasileiros com nomes de água e olho d’água, rio, riacho, ribeirão, igarapé ou arroio, foz, barra, lagoa, brejo, vargem e várzea, mangue e praia, cachoeira, salto ou queda, cacimba, poço e ilha:  Arroio dos Patos, Barra do Piraí, Entre Rios de Minas, Lagoa Dourada, Brejo da Madre de Deus, Foz do Iguaçu, Praia Grande, São Gabriel da Cachoeira, Rio de Janeiro, Belágua, Hidrolândia, Pingo D’Água, Sem-Peixe, Riversul...
Nos dicionários, muitas expressões se referem à água:  Acalmar é por água na fervura e desanimar é receber uma ducha de água fria; Gato escaldado tem medo de água fria; ser um peixe fora d’água é estar fora de seu ambiente; urinar é tirar a água do joelho. Quando uma situação não se resolve, diz-se que muita água ainda vai passar debaixo da ponte. Águas passadas não movem moinho. Fazer água ou ir por água abaixo é afundar, fracassar. Chover canivetes ou cântaros é chover muito. Chover no molhado insistir no mesmo tema. Quem está na chuva, é para se molhar! Fazer uma tempestade em copo d’água é reagir com exagero. - Por que cargas d’água isso foi feito?  Colocar as barbas de molho é preparar-se para o pior.  Querer sombra e água fresca é sonhar ter sossego. 
A vaca foi pro brejo quando a situação não tem mais jeito. Enxugar gelo é trabalhar sem resultados. Dar nó em pingo d’água é fazer o impossível. Ser transparente é ser claro como água. Ser bom até debaixo d’água é ser muito bom. Dar água na boca é despertar o apetite; mudar muito é mudar como da água para o vinho. Cachaça é água-que-passarinho-não-bebe. Alguém que bebeu muito está na maior água.                            
Várias músicas se referem à água: O Hino Nacional Brasileiro se inicia lembrando as margens plácidas de um rio que os índios chamavam de Ipiranga.
Na Aquarela do Brasil, Ary Barroso cantou “as fontes murmurantes, onde eu mato a minha sede, “e onde a lua vem brincar.”
E nas cantigas de crianças: “...fui na fonte do Itororó beber água e não achei...”
Nos carnavais a água foi cantada: “Você pensa que cachaça é água? Cachaça não é água, não. Cachaça vem do alambique, e água vem do ribeirão...”
“As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar...”.
“A água lava, lava, lava tudo, a água só não lava a língua dessa gente!”
“Allah, meu bom Allah! Mande água pra Ioiô Mande água pra Iaiá Allah, meu bom Allah! Allah – la - la – ô, mas que calor!”.
Luiz Gonzaga canta na Asa Branca: “Que braseiro! Que fornalha! nem um pé de plantação! Por falta d’água, perdi meu gado morreu de sede meu alazão!”
Gilberto Gil: “Dá-me um copo d’água, eu tenho sede e essa sede pode me matar.” E “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar.”
Noel Rosa cantou: “o orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu...”
JK gostava de serenatas:- “Como pode um peixe vivo viver fora d água fria? “
Tom Jobim cantou as Águas de março. Guilherme Arantes, o planeta água.
 “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria” nos lembra do papel da mulher.
A poesia de Manuel Bandeira trata da água:
«E quando estiver cansado
 Deito na beira do rio 
Mando chamar mãe-d’água
Pra me contar as histórias  
Que no tempo de eu menino 
Rosa vinha me contar 
Vou-me embora pra Pasárgada».
 João Cabral indaga, em Morte e vida Severina:  “Seu José, mestre carpina,   que habita este lamaçal,   sabes me dizer se o rio   a esta altura dá vau?   Sabe me dizer se é funda   esta água grossa e carnal?”
 Na Pátria Minha,  Vinicius de Morais escreve: “Mas sei que a minha pátria é a luz, o  sal e a água que elaboram e liquefazem a minha mágoa em longas lágrimas amargas.”
E
João Guimarães Rosa:  “Perto de muita água, tudo é feliz”.
Cidades antigas preservam aquedutos e chafarizes, como patrimônio urbanístico, além das fontes luminosas, espelhos d`água, repuxos. Lagos e lagoas urbanas valorizam o espaço, refrescam e dão conforto ao ambiente construído.
(Parte do texto-base de proposta de livro com Aparecida e Maria Helena Andrés (ilustrações).