quinta-feira, 13 de abril de 2017

A Nova Zelândia e o rio como pessoa[1]



Maurício Andrés Ribeiro

O Rio Whanganui foi reconhecido como pessoa pelo parlamento neozelandês
Na Nova Zelândia houve uma secular história de confronto entre duas cosmovisões: a dos povos nativos que ali viviam e a dos colonizadores britânicos.  Depois de muita luta, persistência e perseverança o governo da Nova Zelândia celebrou um acordo com os Maoris que considerou o rio Whanganui como pessoa, um ente vivo, com seus direitos próprios. Foi um passo revolucionário, o primeiro rio no mundo a ganhar tal status. Ao reconhecer o Rio com Poder Ancestral como uma pessoa legal com seus direitos próprios, ele foi colocado em nova relação com os seres humanos.
Pelo acordo, duas pessoas escolhidas pelo governo neozelandês e pelos Maoris atuam como a face humana do rio, agindo em seu nome e guardiões de seus interesses. Elas administram um fundo de $30 milhões de dólares dedicado a melhorar a saúde e bem estar do rio.  Esses dois indivíduos são apoiados por um grupo de pessoas com interesses no rio para fazer avançar a saúde ambiental, social, cultural, econômica e o bem estar do rio. Haverá uma forte vigilância para evitar violações ao acordo.
Em agosto de 2014 uma multidão se reuniu quando os líderes tribais assinaram um acordo com o governo da Nova Zelândia reconhecendo legalmente o Whanganui como um ser vivo. Na introdução desse acordo, aprovado no parlamento em março de 2017, o Rio Whanganui é descrito como fonte de vida, saúde e bem estar, um todo vivo que vem das montanhas até o mar, um todo indivisível e vivo incorporando todos os seus elementos físicos e metafísicos. Desculpas formais foram pedidas pelo governo da Coroa aos indígenas por seu fracasso em reconhecer seus interesses. Um pagamento de 80 milhões foi feito para compensa-las pelas quebras em seus direitos em relação com o rio.
No entendimento maori, a relação entre as pessoas e a terra é baseada em parentesco, consanguinidade e não em domínio. Os Maori pensam que o rio existe como uma entidade única e indivisível. Na sua cosmologia a água são as lagrimas do pai, chorando por sua esposa, a mãe terra. O sangue da terra é a água que traz vida. Seu ritmo de vida é regido conforme o ciclo agrícola, o movimento dos peixes e de pessoas rio acima e rio abaixo. O modo Maori de pensar sobre rios os considera como “as veias da terra” que traz saúde, vida, prosperidade, bem estar para plantas, animais, e pessoas. A tradição Maori diz que “Eu sou o rio, o rio sou eu.” (nesse  sentido ela é idêntica à de J.Krishnamurti, que disse  “O ambiente é o que somos em nós mesmos. Nós e o ambiente não somos dois processos diferentes; nós  somos o ambiente e o ambiente somos nós.” E também corresponde à visão de Pierre Weil sobre a fantasia da separatividade.)
Essa cosmovisão de unidade do ser humano com a natureza gerou consequências práticas, jurídicas, legais e de gestão.
Durante séculos os colonizadores britânicos menosprezavam essas visões, impunham injustas vendas de terras para os europeus e confiscavam territórios ancestrais dos Maoris. No século XIX os povos indígenas eram vistos como parte das coisas vivas que movem na terra, para serem governadas pelos cristãos civilizados. A expansão colonial era entendida como virtude e esse domínio sobre a terra era visto como um progresso. Ao acreditarem que os peixes, pássaros, florestas e rios foram criados para o uso humano, os colonizadores subjugaram a natureza selvagem, queimaram florestas, drenaram várzeas, poluíram os rios. Os colonos não consideravam  conveniente respeitar as convenções e os direitos dos Maoris.
Os Maoris levavam aos tribunais o significado temporal e espiritual do rio, essencial para sua identidade, cultura e bem-estar. O rio era visto como uma entidade viva com sua propria personalidade e força de vida, e como um todo indivisível, não algo para ser analisado pelas partes constituintes de agua, leito e margens. Houve debates jurídicos acalorados sobre a propriedade ou o usufruto da agua. Os Maoris lutaram contra as agressões e reclamaram nos tribunais sobre as poluições dos rios, sua drenagem e canalização bem como sobre o fracasso do governo em proteger seus direitos de usar e desfrutar de rios ancestrais. Por gerações, o povo de Whanganui protestou contra a destruição que sofriam com a introdução de outras espécies de peixes, a extração de cascalho, os desvios no leito do rio para produzir energia elétrica. Eles registravam sua tristeza com a situação, o rio estagnado e morrendo. “ Eu sou o rio, o rio sou eu. Se eu sou o rio e o rio sou eu – então empaticamente eu estou morrendo.” Práticas ancestrais foram ignoradas contra a sua vontade, seu desfrute dos rios foi prejudicado; falharam os apelos à lei para protege-los contra tais prejuízos e danos. Nos tribunais eles tentaram proteger sua relação com os rios ancestrais com petições, apelos, ação legal. Tais lutas nos tribunais se estenderam por mais de um século .
Por muito tempo  não escutava se a raiva expressa pelo povo e o dano a sua vida causada pela degradação do rio e não tocava nos deveres legais da Coroa de proteger usuários do rio contra danos. A decisão do parlamento neozelandês de março de 2017 foi resultado dessa longa luta de um povo indígena para defender sua cosmovisão e suas práticas ns relações com a água, diante de outra cosmovisão poderosa.
A resiliência demonstrada pelos Maoris e os resultados de sua perseverança podem inspirar outros povos em aprimorar sua relação com a água.




[1] Texto baseado no artigo “Veias da Terra- Direitos, responsabilidades e a governança dos rios na Nova Zelândia”, de Anne Salmond, publicado em março de 2017.

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