segunda-feira, 30 de abril de 2018

Questão urbana e questão humana



Maurício Andrés Ribeiro

A cidade é um lugar geográfico e hidrográfico.  É também um ecossistema em que seres vivos interagem com o ambiente construído  e natural. Populações vegetais, animais, humanas se relacionam entre si e com o lugar em que vivem e que constitui seu habitat.
Nas cidades, há preponderância da população humana, mas as demais populações são também relevantes.
Os vegetais vivos estão   nas áreas verdes, parques, jardins, quintais e nos vasos nos interiores das casas. Vegetais mortos se encontram nas feiras, mercados, nas cozinhas e restaurantes onde são consumidos como alimento pelos humanos ou por outros animais e nas compostagens onde são reciclados em adubo orgânico.
Vegetais  em feira livre. Brasilia.
Há problemas na convivência com a vegetação quando ela cresce e invade as casas, causa insegurança, rompe calçadas e tubulações, entope calhas.
Formigueiro em superquadra. Brasilia.
Os animais vivos estão nos zoológicos, soltos na cidade como os pássaros, as formigas, os cupins, os animais de estimação, pets como cachorros, gatos, aves. . Há várias espécies consideradas como ameaças à saúde humana e combatidas, como baratas, ratos, escorpiões, (as chamadas zoonoses). Há animais mortos nos açougues, matadouros, frigoríficos, cozinhas, transformados em alimentos para os humanos. Há também aqueles que morrem ao transitar pelas ruas e são atropelados
Nas cidades brasileiras era comum as crianças com atiradeiras e estilingues atacarem as aves, mas hoje em dia desenvolveu-se uma relação mais amigável com os animais. Em cidades indianas, os animais (vacas, macacos, camelos, elefantes, cavalos, cães) sacralizados, circulam com desenvoltura nas ruas e espaços públicos.
As cidades também se abastecem de alimentos vegetais e animais que vêm de territórios fora delas, seja os animais de produção confinados em fazendas industriais ou soltos, ou os animais silvestres caçados, as plantas cultivadas ou coletadas em seu ambiente natural.
A questão urbana é, portanto, também uma questão que envolve o modo de relação da população humana com as demais populações vivas e sencientes, dentro das cidades e fora delas.
Dada a hegemonia e predominância da população humana nas cidades, a questão urbana é também uma questão humana.
O ser humano desempenha vários papéis, tem estilos de vida, padrões de consumo, atitudes e comportamentos que influenciam o todo. O modo como essa espécie se organiza social, econômica e politicamente, que hábitos e atitudes culturais pratica, como se relaciona com as demais espécies vivas, todas essas variáveis importam  e impactam na questão urbana.
Homo economicus. Comércio no terminal. Brasilia.
O modo como se percebe a si própria e se auto define, como concebe e procura realizar  seu bem estar material como homo economicus e se enxerga como um corpo com necessidades físicas e uma mente com limitações e carências; ou se tem de si mesma uma visão abrangente que inclui corpo, mente, emoções, alma e espirito, tudo afeta o modo como se comporta e tudo afeta a configuração das cidades. A   questão urbana é diretamente influenciada pela questão humana.
Psicográfico.  O ser humano como corpo, mente, alma, espírito. Ken Wilber
A evolução urbana é também influenciada por tais questões imateriais e intangíveis – culturais e antropológicas -  e não apenas pelas forças econômicas – o capital imobiliário – e políticas que predominam.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Sri Aurobindo e Auroville

Maurício Andrés Ribeiro

Sri Aurobindo inspirou, com sua vida e suas idéias, tanto a criação de Auroville, como o movimento do Federalismo Mundial, que dissemina o ideal da unificação política da humanidade.
Nascido em 1872 em Calcutá, Aurobindo passou dos 7 aos 21 anos na Inglaterra, onde tomou contato com a cultura e a ciência ocidentais. Na primeira década do século XX, participou ativamente dos movimentos políticos nacionalistas indianos pela independência; foi preso durante um ano, ocasião em que teve oportunidade de aprofundar sua prática de ioga. Em 1910, partiu para Pondicherry, na Índia Francesa, onde produziu a maior parte de sua obra. Ali, passou por experiências espirituais com a ioga e a superconsciência. Em 15 de agosto de 1947, data de seu aniversário, a Índia alcançou a Independência; morreu em 1950.
Esses breves dados biográficos não abarcam a complexidade da vida desse poeta, político, escritor, filósofo, nacionalista, iogue e visionário, considerado santo e avatar por seus seguidores na Índia e em todo o mundo.
Em Pondicherry, antiga colônia francesa ao sul da Índia, na costa de Coromandel, está o núcleo do ashram fundado por Sri Aurobindo. Ali se localiza o principal centro do World Union, associação voluntária criada para promover as idéias universalistas de Sri Aurobindo. A.B. Patel, seu primeiro secretário, fundou universidades na África e depois se retirou para Pondicherry para dedicar-se ao trabalho de divulgar o pensamento político e social de Aurobindo.
De sua vasta obra, ressalta o conceito de que a crise que o mundo atravessa é evolutiva, que estamos em mutação e somos seres de transição. Segundo Sri Aurobindo, as escalas de organização coletiva humana vão se ampliando: a família, a nação (que ainda hoje é imperfeitamente realizada) e, por último, a união mundial, em direção à qual já se desenvolvem trabalhos pioneiros.
Como Darwin ou Teilhard de Chardin, Aurobindo foi um evolucionista. Mas, enquanto Darwin era formal e materialista, Aurobindo postulava que o espírito é o motor da evolução.[1] Assim, o estudo do passado não necessariamente abre as portas para compreender o futuro. Sri Aurobindo afirmava que o desenvolvimento das emoções é condição primordial para a evolução humana consciente.
A espiral da evolução na planta de Auroville
Criada em 1968, Auroville se situa nas proximidades da baía de Bengala, a 10 km de Pondicherry, em meio a amplas áreas verdes. Dos documentos de sua criação consta:

Ela foi concebida e projetada como a cidade da evolução perpétua, tendo suas raízes no futuro, estando, assim, sujeita a contínua revolução no pensamento e no comportamento. Ela não pode pertencer a qualquer raça, nação, religião ou seita específica ou a qualquer filosofia estabelecida.[2]

Auroville é uma cidade aberta. Propõe-se a ser um local de paz, harmonia e concórdia, com base na idéia de que a espécie humana não é o último passo da evolução, que continua. O homem é um ser em transição, que ainda deverá evoluir física, mental e espiritualmente e pode vir a ser ultrapassado por nova espécie.
A origem de Auroville remonta a 1955, quando surgiu a idéia de construir uma cidade internacional voltada para o novo homem da nova era.  Reconhecida em 1966 pela Assembléia Geral da Unesco como cidade dedicada ao entendimento entre os povos e à paz, Auroville foi inaugurada com a presença de 5 mil pessoas de todo o mundo.
Na cerimônia de sua fundação, vários países enviaram, como ato simbólico, um pouco da terra de seu solo, que foi depositada em um monumento erguido no centro da cidade. Durante a cerimônia, o diretor-geral da Unesco, Dr. M.S. Adiseshiah, pronunciou as seguintes palavras:

Em nome da Unesco, em nome de todos vocês presentes e não presentes aqui, eu exalto Auroville, sua concepção e realização, como uma esperança para todos nós e particularmente para nossas crianças, para nossa juventude que está desiludida com o mundo que construímos para ela, e que encontrarão em Auroville um símbolo vivo, inspirando-se a viver a vida para a qual são chamados.

Considerando Auroville um programa que encarnava os maiores e mais fundamentais propósitos da Unesco, Adiseshiah acrescentou:

A educação é o domínio especial da Unesco, que lida com as mentes humanas, com o espírito do homem. A educação, tal como até hoje praticada, não levou à paz, não levou à harmonia e ao entendimento. As pessoas que começam as guerras não são os analfabetos ou os ignorantes na Europa ou na América. O sistema educacional que Auroville terá, e que está sendo já desenvolvido e aperfeiçoado, é o sistema no qual cada homem, mulher e criança aprenderá a viver, e viver para aprender, livre e harmoniosamente em um mundo em evolução assustadora. Os aurovillianos que eu encontrei são a base de minha esperança. Eles me recordam os astronautas e os cosmonautas que, como vocês sabem, passam anos treinando-se para as tremendas tarefas que tem que desempenhar. Os aurovillianos são os cosmonautas e astronautas desta nova cidade internacional da esperança, do desenvolvimento, da prosperidade e da caridade.

A Carta de Auroville afirma que ela pertence à humanidade como um todo: uma cidade planetária para a criação e a propagação do entendimento e da paz. Outros trechos da Carta dizem: "Para viver em Auroville, deve-se desejar servir à consciência perfeita."; "Auroville será o lugar de uma educação sem fim, de progresso constante, e de uma juventude que nunca envelhece. Auroville quer ser a ponte entre o passado e o futuro. Incorporando todas as descobertas de fora e de dentro, Auroville florescerá audaciosamente em direção a realizações futuras."; "Auroville será o sítio de pesquisa material e espiritual, para a vivência concreta de uma unidade humana real.".
Nos anos 70, tiveram início os primeiros assentamentos. Desenvolveu-se um bem-sucedido projeto de reflorestamento, com um milhão de mudas, para conter a erosão que se agravava com as monções. Foram construídas casas com estruturas simples, adequadas tanto para o calor do verão, como para a estação chuvosa das monções. Foram implantados e experimentados sistemas de energia alternativa – energia solar e biogás.
A planta urbanística foi planejada por uma equipe internacional.[3] Em forma de espiral, simboliza a evolução humana e prevê capacidade para abrigar 50 mil pessoas voltadas para a pesquisa e a experimentação, em educação permanente.

O Matrimandir em 1978

O Matrimandir  em 2015
No centro da espiral está uma grande esfera de concreto, construída pelos próprios aurovillianos: o Matrimandir, templo considerado a alma, a “força coesiva de Auroville", "o símbolo vivo da aspiração de Auroville para o Divino".[4] 
No centro do Matrimandir, há uma câmara com doze paredes de mármore branco, utilizada para meditação. O detalhe arquitetônico mais importante fica no meio da câmara: um globo de cristal de 70 cm de diâmetro, feito pela Zeiss, na Alemanha.
O pavilhão da Índia abriga uma maquete do projeto de Auroville, uma biblioteca, uma loja e um centro de cultura indiana. Na cidade há também escolas de crianças que procuram proporcionar um novo tipo de educação, baseada nos ensinamentos de Sri Aurobindo.
Hoje, vivem e trabalham em Auroville pessoas de dezenas de países. Esse fluxo migratório suscitou inicialmente problemas de integração com a população que vivia no local e nas proximidades. A chegada de forasteiros com valores culturais diferentes transformou o contexto social. Entretanto, com o passar do tempo, a situação foi se harmonizando, e os habitantes das aldeias vizinhas passaram a se inserir no projeto de variadas formas: alguns começaram a trabalhar nos setores de reflorestamento, artesanato e na produção de alimentos; outros vieram estudar nas escolas e centros de treinamento.
Auroville contou com recursos do governo da Índia, doações de indivíduos e de organizações internacionais para sua fundação e manutenção. Mas espera alcançar a auto-suficiência por meio da produção de alimentos (já consegue suprir 10% das necessidades locais; o restante vem de Pondicherry e é distribuído pela cooperativa Pour Tous), de artigos como incenso, perfume e de trabalhos artesanais, como serigrafia em seda e outros tecidos. Alguns produtos são exportados.
O governo indiano participa da fundação que administra o projeto Auroville. Os recursos que o governo doa são utilizados em pesquisas: criação de protótipos para digestores de biogás, novas aplicações para o ferrocimento, como produção de portas, telhas e caixas d'água, entre outras.
Auroville é, assim, uma "cidade experimental", "um laboratório da consciência, um lugar onde se tentam novas maneiras de os homens viverem em comunidade"[5]. E ajuda a preparar a humanidade para os passos seguintes de sua evolução.



[1] Na mesma linha há uma ampla gama de estudos. Cf. SMITH, L. Intelligence came first.
[2] Carta de Auroville. Cf. site www.auroville.org.
[3] A abertura para o trabalho de urbanistas estrangeiros teve impulso com o projeto de Chandigarh, por Le Corbusier, e o projeto de Auroville; na arquitetura, com a obra de Louis Kahn, no Instituto de Administração de Ahmadabad. Entre os arquitetos e urbanistas indianos, destaca-se Charles Correa, cujo projeto mais conhecido é o de New Bombay, uma cidade nova nas cercanias de Mumbai.
[4] Carta de Auroville. Cf. site www.auroville.org.
[5] Carta de Auroville. Cf. site www.auroville.org.


[i] Texto integrante do livro Tesouros da India para a civilização sustentável, Santa Rosa Bureau Cultural